24/06/2024
O Projeto de Lei 1904/24, que propõe equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação ao homicídio e que pode aumentar a pena máxima para 20 anos de prisão, tem gerado intenso debate no Congresso Nacional e na sociedade. A proposta, que estabelece um limite de tempo para abortos legais mesmo em casos de estupro de menores, tem provocado divisões profundas entre defensores e críticos, especialmente devido às possíveis implicações para os direitos das mulheres e o tratamento de vítimas de violência sexual
O Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto após 22 semanas de gestação ao homicídio e aumenta a pena máxima para quem realiza o procedimento vem gerando polêmica dentro e fora do Congresso Nacional. O texto estabelece um limite de 22 semanas de gestação para abortos legais, mesmo em casos de estupro de menores. Atualmente, a lei brasileira permite o aborto em casos de estupro, risco de vida para a mulher e anencefalia fetal (ausência de formação do cérebro do feto), sem especificar um tempo máximo de gestação para esses casos no Código Penal.
O assunto divide opiniões e gera polêmicas – uma das mais acentuadas é a penalidade prevista, que pode ser mais severa para a vítima do abuso do que para o agressor.
A proposta
A advogada Beatriz Aparecida Maciel de Oliveira esclarece os detalhes e as implicações do Projeto de Lei. Segundo ela, a proposta não apenas estabelece um limite de 22 semanas para o aborto legal, mas também traz mudanças significativas ao Código Penal Brasileiro. “O Projeto de Lei 1904, de 2024, que foi protocolado agora no mês de maio, prevê a alteração do Código Penal para equiparar o aborto realizado após 22 semanas de gestação a um crime de homicídio simples, inclusive nessas hipóteses que são permitidas pela legislação. Então, por exemplo, no caso de gravidez resultante de estupro, eles querem equiparar a um crime de homicídio simples”, explica a advogada.
Ela destaca que o projeto transforma as três hipóteses atualmente permitidas para o aborto em situações passíveis de aplicação da pena. “Basicamente, essa seria a principal alteração, que então seria fazer com que essas três hipóteses já permitidas de aplicação do aborto se transformem em uma aplicação de pena de homicídio simples”, complementa.
Pena maior para a vítima do que para o agressor
Na legislação atual, o aborto é punido com penas que variam de um a três anos de prisão, quando provocado pela gestante; de um a quatro anos, quando médico ou outra pessoa provoque um aborto com o consentimento da gestante; e de três a dez anos, para quem provocar o aborto sem o aval da mulher. Um dos aspectos mais controversos do novo projeto diz respeito à punição prevista para quem realizar o aborto. Se a lei for aprovada, o aborto será equiparado ao homicídio simples, conforme o artigo 121 do Código Penal, com pena variando de 6 a 20 anos de prisão. Em contraste, a pena mínima para estupro, conforme o artigo 213 do Código Penal, é de 6 anos quando a vítima é adulta, podendo chegar a 10 anos. Com a repercussão do assunto, a Secretaria da Mulher, da Criança e da Pessoa Idosa de Irati convocou uma reunião para debater o tema junto com representantes de outros órgãos que atuam na Assistência Social do município. “Motivados por esse assunto polêmico, resolvemos trazer esse assunto em debate na Casa dos Conselhos para a gente se situar, entender quais são as mudanças e saber como trabalhar com o assunto. O que está mais causando a polêmica é o que vemos como criminalizar a mulher e favorecer o agressor. A pena para mulher que fizer o aborto é de 20 anos e para o estuprador é de 10 anos. Então isso gera uma polêmica”, explica secretária da Mulher, da Criança e da Pessoa Idosa, Márcia Mores. Ela comenta que o assunto não é debatido com as mulheres acompanhadas pela secretaria para evitar desconforto adicional. No entanto, a reunião permitirá definir como o tema poderá ser abordado no futuro. “A reunião será para a gente ter um norte e entender a ideia, nos fortalecermos para que possamos trabalhar esse assunto na cidade. É um assunto que não costumamos trazer para as conversas porque a gente trabalha com mulheres vítimas de violência, por isso estamos levando esse assunto para os Conselhos, porque essas mulheres já são muito vitimizadas”, cita a secretária.
Caso o projeto seja aprovado, a secretária avalia que as vítimas de violência sexual que resulte em gravidez e desejem realizar o aborto podem enfrentar danos psicológicos ainda mais severos devido à previsão de pena de prisão. “Isso vai culpabilizar mais a mulher, que já está passando por uma situação delicada, vai acabar piorando o psicológico da mulher. Além de a mulher já estar sofrendo agressão física e psicológica, isso pode acabar gerando um agravo na situação dela por aumentar essa pena do aborto”, observa Márcia.
O outro lado da polêmica
Por outro lado, há aqueles que defendem o projeto. O principal argumento de quem é favorável é que o prazo de 22 semanas estabelecido no projeto para a realização do aborto equivale a aproximadamente cinco meses de gestação, período em que o desenvolvimento fetal já está avançado. No entanto, Márcia explica que muitas vezes vítimas de abuso sexual, especialmente menores de idade, podem não perceber que estão grávidas até este estágio avançado, o que as impediria de recorrer ao aborto legal devido ao tempo já decorrido. “Estão tentando colocar um limite no prazo para o aborto, mas tem também essa questão da burocracia, porque geralmente não se descobre a gravidez no começo. Até os 4 meses geralmente não aparece barriga, então a partir dos 5 meses vão ver, a família vai procurar ajuda e já estará em uma situação avançada”, avalia a secretária da Mulher, da Criança e da Pessoa Idosa de Irati. Ela argumenta que essa situação seria ainda mais problemática para vítimas de estupro menores de idade, especificamente para as crianças, que podem não relatar o abuso aos familiares e que não possuem a capacidade física e psicológica necessária para criar um filho. “Uma criança não tem um corpo preparado para gerar um filho e aí também tem que levar em consideração o organismo, os sintomas, porque muda muito o corpo. Ela não vai ter noção do que estará acontecendo”, comenta.
Atendimentos em Irati
Com foco na assistência às vítimas de 0 a 18 anos incompletos, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) de Irati desempenha um papel crucial. A coordenadora do CREAS, psicóloga Mariane Zarpelon, destaca que a instituição oferece orientações voltadas para a superação de situações de risco e violência, ao mesmo tempo que fortalece o papel protetivo das famílias de jovens que são vítimas de violência. “O CREAS atende aquela situação de risco e violência e se verificado a questão do abuso, acionamos o Conselho Tutelar para as providências que provavelmente serão via [Secretaria de] Saúde. Mas o foco do CREAS é a superação do risco e da violência, que envolvem o encaminhamento para a garantia de direitos”, detalha Mariane. Ela relata que em Irati, neste ano, há suspeitas de abuso envolvendo 7 meninas e 1 menino, dos quais 4 são crianças e 4 são adolescentes. “Destes dados, nenhum deles envolveu gestação decorrente da suspeita de abuso”, conta. Por sua vez, a psicóloga do Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM) de Irati, Vanessa de Lara, cita os dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que revelou que em 2022, mais de 74 mil estupros foram registrados, sendo que seis em cada dez vítimas tinham até 13 anos. “Mais de 74 mil estupros foram registrados no Brasil que também vitimaram crianças e adolescentes. Então como que a gente vai dizer que uma criança vai ser mãe de outra criança? Tem que parar para pensar nisso também”, argumenta. A secretária da Mulher, da Criança e da Pessoa Idosa, Márcia Mores, explica que os casos que envolvem o abuso sexual de crianças frequentemente incluem ameaças contra a vítima para dissuadi-la de relatar a violência sofrida. “Tem muitos casos de ameaça, que o agressor diz à vítima que se ela contar para alguém, vai fazer mal para o pai, para a mãe, então ele trabalha o medo da criança para ela não contar”, relata.
Trauma para toda a vida
Já em relação aos casos de abuso e violência contra mulheres adultas, Márcia explica que ao receberem essas denúncias, providenciam o encaminhamento para assistência à saúde e saúde mental. Ela destaca que, frequentemente, os casos de abuso ocorrem dentro do ambiente familiar. “Casos relacionados ao estupro sim, recebemos bastante, mas muito relacionado ao próprio companheiro da mulher. Ou também muitos casos de adolescentes, que são estupradas por familiares, que é outra situação que acontece bastante, que são atendidas pelo CREAS”, detalha. Ela cita o caso impactante de uma mulher que enfrentou abusos na infância e, somente após os 40 anos de idade, conseguiu buscar ajuda. De acordo com a secretária, o relato ilustra como o trauma pode perdurar por décadas, afetando profundamente o bem-estar psicológico da vítima ao longo da vida. “Temos relatos de uma senhora que quando era criança foi abusada várias vezes por um familiar e ela disse que ficou com aquilo, com o psicológico abalado, e somente agora ela conseguiu buscar ajuda. Então isso é algo que vai afetar a vida toda”, explica. Em Irati, o Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM) oferece suporte especializado para mulheres em situação de violência, abrangendo faixas etárias de 18 a 59 anos. Este serviço visa não apenas a recuperação das mulheres, mas também o apoio necessário para mitigar o impacto dessas situações. “Aqui no CRAM realizamos o acompanhamento das mulheres vítimas de violência, recebemos as medidas protetivas, a gente oferece acompanhamento para essas mulheres. Nós oferecemos o encaminhamento e o suporte necessário tanto para a mulher quanto para os filhos, com acesso ao atendimento psicológico, acesso ao CREAS, ao Conselho Tutelar quando necessário”, explica a psicóloga do CRAM, Vanessa de Lara.
Projeto será votado no segundo semestre
Segundo informações da Câmara dos Deputados, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que o projeto de lei que trata do aborto será discutido no segundo semestre, após o recesso parlamentar. Em um pronunciamento na noite de terça-feira (18), ele estava acompanhado de líderes partidários e representantes de bancadas temáticas da Câmara. Lira destacou que planeja formar uma comissão com membros de todos os partidos para analisar e debater a proposta. Conforme o texto, o presidente negou que a pauta da Câmara e as decisões da Casa sejam tomadas de forma unilateral. Ele afirmou que todas as votações são realizadas de maneira colegiada. Além disso, Lira comentou que o texto eventualmente aprovado na Casa não acarretará retrocessos nem prejudicará os direitos das mulheres. “Quero reafirmar que nada nesse projeto retroagirá nos direitos já garantidos e nada irá avançar para trazer qualquer dano às mulheres”, defendeu.
O que diz a OAB sobre o projeto?
O Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) aprovou na segunda-feira (17), por aclamação, um parecer que define como inconstitucional, inconvencional e ilegal o projeto de lei (PL) que equipara o aborto após a 22ª semana de gestação ao homicídio. Com 81 membros, o Conselho da OAB é o órgão máximo da instituição que representa a advocacia brasileira.
“Absoluta desproporcionalidade e falta de razoabilidade da proposição legislativa em questão, além de perversas misoginia e racismo. Em suma, sob ótica do direito constitucional e do direito internacional dos direitos humanos o PL 1904/2024 é flagrantemente inconstitucional, inconvencional e ilegal”, afirma o parecer.
Legislação atual
A secretária municipal de Saúde, Ismary Llanes Casanas, esclarece que Irati adota as diretrizes do Ministério da Saúde para os casos de aborto contemplados atualmente na legislação vigente. “O Município de Irati segue as orientações do Ministério com relação ao aborto. O aborto induzido é permitido por Lei em 3 situações: quando a gestação implica risco para a mãe (para salvar a vida da mulher), se o feto tiver anencefalia e quando a gestação é resultante de um estupro. Nesse último caso, desde 2022, a gravidez em menores de 14 anos é considerada estupro de vulnerável e por Lei elas têm a opção de realizar aborto induzido”, comenta.
Lenon Diego Gauron