21/03/2023
Logo que assumiu a presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva editou um decreto que revogou diversas normas instituídas pelo governo anterior, de Jair Bolsonaro, que facilitavam o acesso a armas pelos brasileiros. O novo decreto afeta os caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), além dos clubes, escolas de tiro e lojas de munições – que sentem o impacto da decisão no movimento de clientes e no faturamento já nos primeiros meses do ano.
Novo decreto
O advogado e presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Subseção Irati, Mário César Pianaro Angelo explica que o maior controle sob as armas que circulam no país é uma das bandeiras do atual presidente da República. “Uma das principais plataformas eleitorais do ex-presidente Bolsonaro foi a facilitação do acesso da população civil às armas de fogo e munições. Por outro lado, o presidente Lula venceu as eleições prometendo restringir a circulação de armas, tida como excessiva e danosa. Para tanto, logo no primeiro dia de mandato publicou o Decreto n.º 11.366/2023, suspendendo os registros de armas de uso restrito e restringindo a quantidade de armas e munições de uso permitido que podem ser adquiridas pelos CACs, além de suspender a concessão de novos registros para CACs e clubes de tiro”, descreve o presidente da OAB Irati.
Em linhas gerais, o texto provisório suspende novos registros de armas por caçadores, atiradores e colecionadores (CACs) e por particulares, reduz os limites para a compra de armas e munição de uso permitido, suspende novos registros de clubes e escolas de tiros e também suspende concessões de novos registros para CACs. Além disso, o novo decreto estabeleceu que todas as armas compradas desde maio de 2019 sejam recadastradas pelos proprietários em até 60 dias.
O assunto é totalmente polarizado e Mário Cézar explica que dois argumentos sobre a segurança pública surgiram como consequência. “Os defensores do armamentismo alegam que o índice de homicídios caiu durante o período de expansão do acesso às armas de fogo. Porém, no mesmo período registrou-se crescimento no número de crimes cometidos com armas de fogo de mão, bem como de feminicídios e demais crimes contra as mulheres utilizando-se de armas obtidas pelos CACs”, afirma o presidente da OAB de Irati.
Clubes de tiro podem fechar
Ricardo Ruva é proprietário de um clube de campo em Irati, que oferece diversas opções de lazer, como tiro esportivo, pesca, quiosques, mesa de sinuca e atividades com animais de fazenda. No entanto, ele comenta que o que paga as suas contas é a procura pela prática do tiro esportivo, modalidade que foi afetada, mas ainda é presente no local, ao contrário do tiro recreativo, que já não ocorre mais.
Como o decreto atual reduz de 5 mil para 600 munições que podem ser adquiridas no ano todo, esportistas deixam de treinar para economizar suprimentos para serem usados nas competições. “Prejudicou bastante o clube de tiro nesses primeiros três meses. Foi muito pouco movimento, reduziu muito, mais do que 50%. Ainda não fiz as contas, mas a nossa arrecadação diminuiu muito, pois o pessoal acaba segurando as munições que têm para os campeonatos, aí eles não vêm treinar e o clube fica sem movimento, por isso a nossa arrecadação diminuiu drasticamente”. Ele conta também que atualmente o atirador esportivo precisa comparecer ao clube no mínimo oito vezes ao ano, além de participar de uma competição interna para manter o Certificado de Registro ativo.
Com a suspensão de novos registros é impossível adquirir novas armas sem a comprovação de necessidade, como risco de morte, por exemplo. Além disso, a prática do tiro recreativo por pessoas que não têm o registro de CAC também está suspensa, o que diminui ainda mais a arrecadação de clubes de tiro e campo, explica Ruva. “Com esse decreto foi extinto o tiro recreativo, não pode mais. Aquele que quer entrar no esporte, não pode. Você quer comprar uma arma para defesa residencial, você também não pode, a menos que você comprove uma efetiva necessidade, onde a Polícia Federal exige que você esteja sendo ameaçado de morte ou que você trabalhe com alguma coisa que te ofereça um risco significativo para você poder ter uma arma de fogo em casa. Ficou bastante difícil”, detalha.
A prática do tiro recreativo e o esportivo é o carro-chefe do clube. A propriedade de Ruva também tem outras opções para a família, no entanto, ele viu o movimento de pessoas cair muito após o novo decreto. “A gente tinha um movimento bom de pessoas que vinham praticar o tiro recreativo, era bastante gente no final de semana que vinha com a família para atirar, enquanto as crianças ficavam brincando na pescaria ou com os animais. A gente dava cursos de como manusear armas, também de defesa residencial, e agora não pode mais”, complementa.
Ruva avalia que na pior das hipóteses, se nada for feito para alterar o texto vigente, clubes de tiro não terão outra opção senão fechar as portas. “Do jeito que está agora, sem novos registros, os clubes vão fechar. Eu não tenho dúvida disso, porque o pessoal do tiro vai acabar saindo, pois vai ficar muito difícil e muito caro praticar o esporte. Como não tem novos registros, vai ficando cada vez menos atiradores e não terá outra solução senão fechar”, afirma.
O que diz a Confederação Brasileira
A Confederação Brasileira de Caça e Tiro (CBCT), órgão máximo do tiro esportivo no Brasil, formou o Grupo Unidos pelo Tiro Esportivo, que junta as maiores e mais importantes entidades de tiro esportivo brasileiro, e tem como objetivo promover a regulamentação, incentivo e desenvolvimento das diversas modalidades desportivas de tiro.
O presidente da CBCT, Otto Carlos Pohl, explica que já foram protocoladas sugestões para o novo decreto e que o grupo foi recebido pela coordenação do grupo de trabalho que discute as mudanças e suspensões. “Assim que o decreto foi publicado, protocolamos uma apresentação do histórico e atividades desenvolvidas por cada uma dessas entidades e solicitamos assento para participação no grupo de trabalho incumbido de elaborar propostas para o novo decreto. Até o momento não fomos convidados a participar do Grupo de Trabalho, mas no início do mês de fevereiro, a comissão de representantes do Unidos pelo Tiro Esportivo foi recebida para uma produtiva reunião com o Secretário Nacional de Segurança Pública, que coordena o Grupo”, explica o presidente da CBCT.
Otto espera também que a história do esporte, dos clubes e dos atiradores continue sendo respeitada independentemente da posição política ou ideológica do governo. “Continuamos trabalhando e defendendo propostas para garantir a continuidade das atividades de atletas e clubes praticantes do tiro esportivo. Temos clubes confederados que estão às portas de completar 100 anos de existência, como é o caso do Clube Paranaense de Tiro, que completa um século em 2024. Temos outros clubes com várias décadas de existência. Estes clubes e os atletas que os compõe são bastante resilientes, passaram por guerra mundial, períodos em que o autoritarismo imperou, governos de direita, de esquerda, de centro e as atividades legítimas do tiro esportivo e caça legal foram respeitadas e mantidas”, pontua.
Esporte reconhecido
O presidente da Confederação Brasileira de Caça e Tiro enfatiza que a prática do tiro esportivo já traz reconhecimento ao país há mais de um século. “O tiro esportivo trouxe a primeira medalha de ouro para o Brasil em 1920, na Antuérpia, com o Atleta Guilherme Paraense”, frisa Otto.
Ele destaca também que dois atletas brasileiros de apenas 14 anos já são prodígios no esporte e buscam participar das olimpíadas. “Temos atletas de tiro disputando vagas olímpicas, outros competindo e vencendo em provas internacionais, adultos e alguns jovens promissores, como os atletas Hussein Darwich, de Ponta Grossa, e Lorenzo Basso, de Pato Branco, autorizados pela Justiça a praticar a atividade. Trabalhamos para garantir que os legítimos atletas e as novas e promissoras gerações tenham ambiente seguro e propício para seu desenvolvimento”, afirma Otto.
Como o decreto reduz o número de munições que podem ser adquiridas, Ricardo Ruva avalia que os atiradores esportistas foram diretamente afetados. “O atirador esportivo de nível alto foi bastante prejudicado, pois em um final de semana, ele gasta a munição que ele teria para o ano inteiro. No ano passado, na legislação anterior, você poderia comprar até 5 mil munições para cada arma que você tem. Então 5 mil munições para um atirador esportivo, ele gasta bem mais que isso, porque em um final de semana, ele vai gastar 500 munições, às vezes até mil, dependendo de qual competição ele vai participar, isso sem contar os treinos”, descreve.
Ele complementa explicando que para um atirador que não participa de muitas competições o número atual de munições que pode ser adquirido é o suficiente. A opção atualmente, de acordo com ele, é entrar com o pedido no Exército Brasileiro quando precisar de mais suprimentos. “Para nós, atiradores esportivos de um nível um pouco mais baixo, 5 mil era o suficiente para praticar o esporte. Hoje o atirador pode comprar 600 munições, então reduziu bastante, mas ele pode entrar com um pedido no Exército dizendo que é um atirador esportista e que precisa da liberação de mais munições”, esclarece Ruva.
Por sua vez, Otto tem esperança que o texto atual seja alterado em breve e não projeta consequências maiores. “Estamos dispensando esforços e trabalhando para contribuir na estruturação do novo decreto que está em fase de discussão junto a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Temos plena convicção que o atual decreto será alterado, assim não justificando fazermos grandes projeções sobre as consequências a serem encontradas”, justifica.
Ricardo Ruva também espera que um novo texto seja editado para o equilíbrio entre os interesses de todos. “A nossa esperança é que retorne o que era antes, talvez não tanto quanto era, como você poder comprar 30 armas de cada calibre e 5 mil munições de cada calibre de cada arma que você tenha, talvez reduzir um pouco isso, sendo uma coisa um pouco mais maleável, não dando rédea para aqueles que não são sérios fazerem besteira”, finaliza.
Grupo de Trabalho
Um Grupo de Trabalho (GT) foi criado para propor uma nova regulamentação para o Estatuto do Desarmamento. O GT também vai analisar o Decreto 11.366, de 1º de janeiro de 2023, que suspende os registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito por caçadores, colecionadores, atiradores e particulares. Durante a segunda reunião que aconteceu no dia 23 de fevereiro no Palácio de Justiça, em Brasília, teve início a escuta de recomendações e considerações de representantes de associações, organizações, entidades de classe e especialistas que contribuirão para subsidiar os trabalhos dos membros permanentes do GT.
Já nesta semana, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votou para manter suspensos processos em instâncias inferiores da Justiça que discutem a legalidade do novo decreto de armas, ou seja, o decreto segue “inquestionável” até o momento. “O STF, por maioria de 10 votos contra 1, julgou constitucional o Decreto de Armas e na prática anulou qualquer decisão judicial contra a legislação atual, inviabilizando também o ajuizamento de novas ações neste sentido”, finaliza o presidente da OAB de Irati, Mário Cézar Pianaro Angelo.
Um esporte como qualquer outro
“O pessoal procura o tiro esportivo como se fosse um futebol, porque é um esporte e assim como qualquer esporte, libera endorfina, proporciona o prazer e desestressa. A vantagem do tiro esportivo é que você sempre compete consigo mesmo, então você está sempre querendo chegar mais perto do alvo, por isso as pessoas procuram, pelo amor ao esporte”, avalia Ricardo Ruva, proprietário de um clube de campo e tiro de Irati.
No ponto de vista dele, o tiro esportivo e recreativo é um esporte como qualquer outro e envolve além do amor pela prática, a possibilidade do autodesafio, além de proporcionar bons momentos.
Texto/Fotos: Lenon Diego Gauron/Hoje Centro Sul