Doação de órgãos: Histórias que ensinam sobre esperança e solidariedade

Mais que um ato de amor, a doação de órgãos transforma despedidas em novas chances de vida. E para incentivar o ato, acontece em Irati, a 1ª Caminhada e Passeio Ciclístico da Santa Casa, que marca o Setembro Verde e convida a comunidade a refletir sobre a importância de dizer “sim” à doação de órgãos

Neste sábado (27), Irati vai se vestir de verde para falar de solidariedade. A Santa Casa de Irati promove a 1ª Caminhada e Passeio Ciclístico, com saída às 15h30 do Parque Aquático. A iniciativa integra o Setembro Verde, movimento nacional que busca conscientizar a população sobre a doação de órgãos. O objetivo é incentivar as pessoas a conversarem com suas famílias sobre a vontade de ser doador — algo essencial, já que muitas doações não se concretizam pela falta desse diálogo.
Mas a campanha não fala apenas de números. Ela retrata histórias de dor, esperança e vida, como as da professora Cristielle, que perdeu a mãe e ajudou a transformar vidas, e da médica Raphaela, que sobreviveu graças a um transplante.
Entre normas e captações: o desafio da Santa Casa de Irati
Na Santa Casa de Irati são realizadas apenas captações de córneas, devido à falta de neurologista. “Desde 28/08/10, foram realizadas cerca de 230 entrevistas familiares, sendo cerca de 152 captações positivas e cerca de 80 negativas. Na Santa Casa, o diagnóstico de morte encefálica só é confirmado após transferência para outras instituições de grande porte. Só realizamos captação de córnea, ou seja, coração parado”, explica Karine de Oliveira, enfermeira e coordenadora do CIHDOTT.
Ela detalha o processo, mostrando o cuidado necessário. “Identifica-se o paciente potencial doador, com idade entre 03 anos a 70 anos, 11 meses e 29 dias. Verifica-se a declaração de óbito e a causa da morte, entramos em contato com o banco de olhos de Curitiba e informamos diagnóstico, causa da morte, exames laboratoriais e evolução médica. Após aprovação do banco, iniciamos a entrevista familiar. Com a [recepção] positiva da família e assinatura do termo de autorização de doação, é iniciada a captação da córnea direita e esquerda, e encaminhada ao banco de olhos, junto à documentação e amostra sanguínea”, explica Karine.
Segundo ela, a equipe – formada por 23 enfermeiros, duas assistentes sociais e duas psicólogas – realiza a abordagem de forma humanizada e acolhedora. “O processo leva, em média, entre uma e duas horas, dependendo da entrevista e do tempo de chegada da família”. Os profissionais conscientizam sobre a importância da doação e o principal desafio, hoje, é a cultura pré-estabelecida e equivocada quanto à imagem física pós-retirada do órgão.
Uma decisão que salvou 8 vidas
Em meio a procedimentos técnicos e protocolos médicos, há histórias que mostram o verdadeiro impacto da doação. A professora Cristielle Angelita Wisiniewski Cherbiski lembra da decisão da família após a morte cerebral de sua mãe, Geneci Maria Primak Wisiniewski, em 2016.
“Minha mãe, Geneci, então com 66 anos, sofreu um desmaio após uma forte dor de cabeça. A levamos para a Santa Casa de Irati, onde recebeu medicações para dor e vômitos, e realizou vários exames. Vendo a urgência da situação, os médicos solicitaram a transferência e ela foi acolhida no Hospital Bom Jesus, em Ponta Grossa”.
O quadro de aneurisma roto havia sido confirmado e, com a realização da cirurgia, a família ficou esperançosa de que ela pudesse voltar para casa bem. “Rezávamos, todos os dias, esperando essa bênção de Deus na vida da minha mãe. No entanto, seu quadro foi complicando-se a cada dia”. A equipe do hospital fez os protocolos e confirmou a morte cerebral.
“Fiquei sem chão! Mas, no fundinho do meu coração, eu ainda acreditava (e esperava!) um milagre…”. Mesmo diante da dor, a decisão pela doação foi unânime quando a família foi informada de que havia a possibilidade da doação de órgãos. “Autorizamos o procedimento, em comum acordo com minhas irmãs e meu pai, pois apesar de nunca termos entrado nesse assunto com minha mãe, não concebíamos outra forma de ser. Tínhamos certeza que ela queria isso!”, afirma Cristielle.
Foram coletados oito órgãos perfeitos e saudáveis, mesmo com vários problemas de saúde sofridos pela sua mãe. “Deus a havia curado! Ela recebeu a cura que precisava! E agora, pelo menos, oito pessoas podiam ter a chance de acreditar e confiar no futuro. Nossos corações estavam destruídos por estarmos velando nossa mãe, mas ao mesmo tempo, alegres e em paz, pois em algum lugar por aí, um pedacinho dela viveria, para dar vida a outra pessoa. Deus, em sua infinita bondade, quis que nossa guerreira fechasse com chave de ouro sua missão aqui na terra doando seus órgãos”.
Cristielle incentiva outras famílias que, por ventura, passem por esse momento da perda de um ente querido, que possam ser tocadas a doarem os órgãos. “Ainda existem quantas e quantas pessoas nessa expectativa diária de ouvir o telefone tocar com boas notícias de uma nova chance”, finaliza ela.
A melhor notícia
Quem sabe exatamente a sensação de alívio e esperança é a médica Raphaela Nunes, que atende no Pronto Socorro da Santa Casa. Ela, que recebeu um rim de sua mãe em doação em vida, mostra outra dimensão.
“Em 2011, estava em época de vestibular quando comecei a ter alguns sintomas inespecíficos. Fui ao médico, que solicitou alguns exames, e os resultados vieram alterados, principalmente ureia e creatinina, indicando uma doença renal. Receber um diagnóstico tão sério na idade em que eu tinha foi muito difícil, mas sempre mantive a esperança de que tudo se resolveria. ”
Raphaela integrou a lista de espera pelo transplante, mas teve a felicidade de sua mãe, Cleusa Salete Bianco Nunes, ser compatível e doadora. Seu tempo de espera foi pequeno, apenas o necessário para a realização dos exames pré-operatórios, mas, mesmo assim precisou fazer hemodiálise durante um mês. “O sentimento foi de alívio por ter a chance de continuar a vida, mas também de preocupação com minha mãe, já que se trata de um procedimento cirúrgico delicado. Para nossa felicidade, tudo correu bem”, celebra a médica.
Depois dessa experiência, tudo mudou, relata Raphaela: “desde a forma de ver a vida até a maneira de seguir em frente; penso que, se não fosse minha mãe, talvez eu tivesse permanecido por mais tempo na hemodiálise, o que poderia ter limitado meus planos, como a continuidade dos estudos”. Ela sabia que isso poderia impactar em seu sonho de ser médica.
Raphaela sente que a doação é um ato de amor capaz de transformar e salvar vidas. “Eu sou prova viva disso. Seja por meio da doação em vida ou após a morte, cada gesto pode significar uma nova chance para alguém e para toda uma família. Por isso, é fundamental conversar sobre o tema com os familiares e deixar clara a sua vontade de ser doador”, enfatiza, acrescentando que este simples diálogo pode mudar destinos.
A escuta que acolhe
A psicóloga Thais Crovador, que faz parte da equipe da Santa Casa de Irati, explica a importância do apoio emocional durante o processo de doação. “O momento em que uma família recebe a notícia de que a doação de órgãos é possível é extremamente delicado. Geralmente, encontram-se em choque, grande fragilidade emocional e vulnerabilidade, enfrentando sentimentos diversos, como tristeza, confusão, ansiedade ou culpa. Cada familiar reage de forma única, e é natural que surjam dúvidas e inseguranças. ”
Além disso, ela menciona que, como na Santa Casa de Irati a doação pode ser feita apenas por pacientes com morte por parada cardíaca (PCR), a equipe tem um tempo limitado para conversar com a família, esclarecer as dúvidas e ter o aceite para a doação, antes da coleta da córnea. “Essa limitação torna o momento ainda mais sensível, pois a família precisa lidar com a perda repentina e tomar uma decisão importante em um curto espaço de tempo. Neste sentido, é importante que a abordagem de nossa equipe, como um todo, seja empática, clara e respeitosa”. Segundo ela, este momento é de acolhimento imediato e de informações essenciais para que a família se sinta segura e apoiada nesse processo.
O papel do psicólogo, nesse contexto, é oferecer acolhimento emocional, escuta ativa e orientação sobre o processo de doação, ajudando a família a processar o luto inicial e a tomar decisões conscientes, sem pressões. “Nosso objetivo é criar um ambiente seguro, em que a família se sinta amparada e compreenda cada etapa do procedimento. ”
Thais compartilha que, alguns dos receios e dificuldades mais comuns: o medo de mexer no corpo do ente querido ou de desrespeitar a memória dele; conflitos familiares ou religiosos, que podem gerar divergência na decisão; preocupação pela responsabilidade em tomar a decisão e as próprias crenças pessoais, muitas vezes, atreladas à falta de conhecimento sobre o processo de doação.
“Acredito que tornar o processo mais humano e acolhedor possível é responsabilidade, não somente do setor de psicologia e, sim, de toda a equipe. Mas enquanto psicóloga, percebo que isso significa estar presente para ouvir a família, validar seus sentimentos e oferecer apoio emocional em um momento de grande fragilidade”. Na abordagem, os profissionais explicam, com clareza, cada etapa do procedimento de doação, ajudando a família a compreender o que vai acontecer e a tomar decisões conscientes.
Além disso, a equipe reforça a dignidade do paciente e a importância da doação como um gesto de generosidade, que pode trazer esperança e maior qualidade de vida a outras pessoas. “Tudo isso contribui para que essa experiência não seja ainda mais sofrida do que já é, pois nada é capaz de reduzir o sofrimento causado pela morte, mas é nossa responsabilidade, enquanto profissionais de saúde, não tornar esse processo ainda mais traumático e doloroso”, salienta Thais.
Fernanda Hraber