01/11/2024
O feriado de Finados, celebrado anualmente em 2 de novembro, é um momento de tradição e reverência, no qual familiares e fiéis se reúnem na lembrança aos entes queridos que já partiram. A data é marcada por orações, visitas a cemitérios e gestos de carinho e memória. Por outro lado, a data também revela o cotidiano daqueles que lidam com a morte todos os dias: os coveiros e agentes funerários. São pessoas como os coveiros Pedro Kowalski e Rosa Boguchevski e as equipes da Funerária Irati e da Assistência funeral Vida Luz. Eles trazem reflexões sobre um trabalho que, embora marcado pelo luto, também é repleto de amor e fé, além de muitas curiosidades.
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Um ofício para poucos
Pedro Kowalski é coveiro há 28 anos e começou a trabalhar no Cemitério Municipal de Irati por acaso, quando foi contratado para uma reforma. "Eu trabalhava na construção civil, daí um dia vim fazer uma reforma e acabei ficando. Hoje eu só estou aqui porque eu amo o que eu faço, sabe? Tenho muito amor pelo que eu faço", afirma Pedro, que junto com sua esposa, Rosa Boguchevski, dá apoio às famílias.
Rosa já atua lavando capelas há 12 anos. Há quase três, decidiu também ser coveira. “Não tive problema em começar, porque eu via o meu esposo fazendo e eu tinha muita vontade de aprender. Eu gosto muito de estar junto com as pessoas nesse momento, porque eu consigo, de uma forma ou de outra, estar ajudando com alguma palavra, independentemente de religião. A gente atende todos da mesma forma, porque todos são filhos de Deus”, conta Rosa.
Ela destaca a importância do carinho e da compreensão em seu trabalho. “Quando alguém falece, ligam para a gente e fazemos o enterro; fazemos a exumação quando precisa; e ainda dou uma palavra de conforto para a família”, ressalta.
E esse espírito de união e acolhimento não se limita apenas ao relacionamento com os enlutados, mas também à equipe, que Rosa define como uma família. "Nós temos os rapazes da administração, o Paulo Roberto Vieira e o Alberto Schereda, que são pessoas boas, e trabalhamos com as funerárias também, somos uma família só", afirma.
Desafios de enfrentar o luto
Embora o trabalho dos coveiros traga histórias de fé e solidariedade, também há momentos que deixam marcas profundas. Pedro, que já presenciou muitos enterros ao longo dos anos, confessa que as cerimônias de crianças são as mais difíceis. “Eu guardo muito comigo as criancinhas. Quando fazemos um procedimento de criança, é muito complicado. A gente fica três, quatro dias sem chão, para falar a verdade”, relata, emocionado.
Apesar de todo o profissionalismo, Rosa também conta que nem sempre é possível segurar a emoção. “O que o Pedro me ensinou desde o começo é que quando for fazer um trabalho, não pode chorar. Mas quem pode controlar o coração e o sentimento? A gente não consegue. Uma vez fomos fazer um enterro de um bebezinho de um ano e sete meses e a mãe estava desesperada; eu estava me segurando, porque o Pedro falou que eu não podia chorar. Daí, eu olhei para trás, as crianças chorando, os tios, os avós, a mãe, o pai chorando, e eu vi o Pedro lá atrás, chorando. Então, assim, nessa hora, pode ser que você não consiga segurar as lágrimas, pode ser que você faça o trabalho chorando”, relata.
Ela relembra um trabalho recente que precisou fazer e que talvez tenha sido um dos mais difíceis de sua carreira. “Poucos dias atrás eu fui chamada para fazer um sepultamento de um menininho de oito anos. E daí, quando eu cheguei para fazer, eu lembrei que há quatro meses o avô dele tinha falecido e eu tinha feito amizade com esse mesmo menininho. Então, aquele dia foi difícil, porque eu comecei a chorar naquela hora e fui parar acho que só dali uns três dias. Somos seres humanos e a gente tem sentimentos, né?”
Aqueles que cuidam dos mortos
Quem também enfrenta desafios diários com a morte são as equipes das funerárias. Para Ana Paula Silva, sócia da Funerária Irati, o trabalho realizado pelos profissionais é uma missão que exige não apenas preparo técnico, mas também um forte apoio emocional às famílias enlutadas.
“O nosso trabalho é difícil. É muito. A gente lida com emoção, com sentimento, com o último momento, a despedida de pessoas que você ama. A gente tem que ser psicólogo, tem que saber atender, porque é um momento de muita dor. É a pior dor que existe, porque essa dor não tem remédio, não tem o que fazer. Não tem médico que possa fazer alguma coisa, não tem nada. É só a fé, se apegar com Deus, se apegar nas religiões que cada um tem para encontrar força para parar em pé. E nós aqui somos a ponta final, nós que damos esse suporte para quem perde seu ente querido”, detalha.
Edmilson José Ferreira Júnior, sócio da Assistência funeral Vida Luz, relembra o desafio extremo enfrentado durante a pandemia de Covid-19. Com um número crescente de óbitos e protocolos rigorosos, ele descreve a pressão e os riscos enfrentados no cumprimento de seu dever, além do estigma injusto que muitos profissionais ainda carregam. “As pessoas, às vezes, olham pra nós como se a gente fosse o culpado pela morte dos outros, mas a gente não tem a chance de escolher quem vai. Só que na hora que a pessoa precisa, alguém tem que fazer serviço. Principalmente na época do Covid, foi algo, assim, não poderia chegar perto. As pessoas até brincaram dizendo que íamos ficar ricos. Era uma época que todo mundo ‘estava correndo’, porque tinha a Covid e nós tínhamos que ir abraçar o problema. Teve época que fizemos viagem com pessoas com Covid e ninguém sabia”, lembra. “Eu nunca tinha passado por isso, mas a hora que eu entrei no hospital pela primeira vez, eu comecei a sentir um frio na barriga. Precisei me vestir com aquela roupa especial e subir lá com a urna até na UTI”, complementa.
As histórias que marcam
O cotidiano no cemitério e nas funerárias é permeado por histórias peculiares e situações inusitadas. Rosa e Pedro, que já realizaram inúmeros enterros e exumações, contam que muitas vezes se deparam com situações inusitadas. “Dentro do cemitério há muitas coisas curiosas que acontecem. A pessoa acha que ela vai virar pó depois que morrer. Pode ser que vire, como pode ser que não vire. A gente já tirou corpo aqui com nove anos após o sepultamento e eu tive que colocar de novo, porque estava inteirinho. O Pedro já retirou um corpo que fazia 30 anos que estava na terra, que também estava inteiro. Tem alguns mistérios que nós nunca vamos poder decifrar”, comenta Rosa.
Na Assistência funeral Vida Luz, o agente funerário João Maieski Moureira relembra situações curiosas que marcaram sua carreira de 15 anos. “Uma vez que eu estava levando um corpo para o interior do município e furou o pneu, e o pneu reserva ficava embaixo do carro aonde fica o caixão. E só tinha mato, não tinha ninguém na estrada. Aí tive que colocar os suportes no chão, colocar o caixão para fora. Quando estava macaqueando o carro, o caixão lá atrás, e nisso veio uma caminhonete, o cara veio e deu de cara com aquele caixão e se assustou. Mas no fim ele acabou me ajudando a trocar o pneu e a guardar o caixão de volta”, relata João, rindo do susto que o ajudante levou.
João relembra também que, no passado, o Instituto Médico Legal (IML) muitas vezes não conseguia atender a todas as ocorrências, e a responsabilidade recaía sobre as funerárias. Ele conta que muitas vezes eram os próprios funcionários da funerária que faziam o recolhimento de corpos em casos de acidentes e mortes violentas, levando-os até o instituto. Em algumas situações, até mesmo a polícia fornecia câmeras para que eles registrassem fotos da cena. Com isso, diversas histórias marcaram a carreira dele.
Outro relato de João revela o lado curioso e, por vezes, inesperado do trabalho dos agentes funerários. “Teve uma outra situação também que chamou a atenção aqui quando mataram um homem e o irmão dele que estava cuidando até a gente chegar. Ele falou: ‘Vamos desenrolar isso aí que eu quero ir no baile ainda hoje’. Pensei Meu Deus, o irmão morre e o cara quer ir no baile. Aí lembro que o corpo voltou, arrumamos tudo, tivemos que ir atrás do irmão do falecido lá dentro do baile e ele não saía de lá. Aí o cara da portaria queria cobrar a entrada nossa do baile para a gente procurar o cara. Mas no fim das contas ele acabou entendendo”, conta rindo.
Evolução dos serviços funerários
Além das mudanças estruturais no trabalho das funerárias, novos procedimentos trouxeram avanços importantes ao setor. Para Ana Paula, da Funerária Irati, a tecnologia e a aplicação de técnicas modernas transformaram a forma de proporcionar uma despedida mais serena e respeitosa às famílias enlutadas. “E a evolução do nosso trabalho, as dificuldades, foram muitas. No passado, não existia nem tecnologia. A preparação de corpo era uma preparação simples. Hoje não, hoje tem a tanatopraxia, que é a estética, eu digo que é a estética pós-morte. É onde fica a lembrança, a imagem, a despedida fica suave. A pessoa fica serena, fica tranquila. E são coisas que antigamente não existiam. Então a gente teve que ir acompanhando, teve que ir fazendo curso, teve que ir se preparando para evoluir junto”, avalia.
Crenças e superstições
Outras histórias curiosas envolvem superstições locais, como a da família que pediu para Edmilson fazer um desvio para evitar que o carro funerário passasse em frente ao cemitério antes de chegar à igreja. “Eu tive que fazer uma rota de 10km a mais porque a família disse que eu não poderia passar na frente do cemitério com o corpo antes de ir na igreja. Tem também pedidos para não amarrar os pés, principalmente na região do interior do município, a primeira coisa que perguntam é se amarrou os pés do corpo; e tem gente que ergue as flores para ver se está amarrado ou não. Não pode ir descalço, alguns colocam ramos bentos embaixo do travesseiro. Tem a superstição de entrar com o caixão primeiro com o lado dos pés para dentro da casa, depois, dentro da casa, virar de novo para deixar na posição correta. Não sei o motivo”, conta Edmilson.
Dia de Finados
O Dia de Finados é uma data significativa que convida as pessoas a homenagearem aqueles que já partiram. Para Roseli Silva, da Funerária Irati, este dia transcende o luto e se transforma em um momento de reflexão e carinho, em que as lembranças e saudades ganham espaço nas celebrações individuais. “Finados, é o momento de as pessoas homenagearem aqueles que partiram, é a lembrança, a saudade, o momento para refletir, é o momento daqueles que se foram. E a gente que ficou tem o respeito, o carinho. É o dia de levar uma flor, fazer uma oração, é um momento de refletir as saudades, as recordações. Apesar que saudades, recordações você tem todo dia, mas esse é um dia especial, onde você homenageia com uma coroa, com uma flor, cada um do seu jeito”, conclui.
Experiências sobrenaturais?
Além das histórias e desafios diários da profissão, os coveiros Rosa e Pedro contam que, durante suas jornadas, já testemunharam situações inexplicáveis. Entre relatos de vultos e o que eles acreditam ser uma referência a uma santa que teria surgido no cemitério, suas experiências revelam um lado misterioso do ambiente de trabalho que, para eles, vai além do cotidiano. “Um fantasma mesmo não vi, mas o que a gente sente, às vezes, é um vulto. Isso aí é normal. A gente olha, vê passando o que acha que é uma pessoa, vai ver quem é, e não tem ninguém. Mas eu acho que isso é uma coisa boa”, relata Pedro.
Para Rosa, um sinal inesperado pode ser uma manifestação da presença divina no local. “Aqui é um lugar sagrado. A gente tem que estar aqui para fazer coisas boas e quando você pede aqui uma ajuda do céu, você encontra o que você precisa com a ajuda de Deus. E daí, os vultos que de repente aparecem, eu entendo que é Deus mostrando que Ele está com a gente”, avalia.
Outro momento marcante ocorreu durante um serviço de exumação, quando Rosa encontrou um objeto no interior de um dos túmulos que, segundo ela, remete a uma figura religiosa sagrada, reforçando sua crença na presença espiritual em seu trabalho. “Nós abrimos uma gaveta há um ano e pouco e tinha um objeto com o formato de uma santa. Para nós foi uma bênção maravilhosa ver o formato e isso chamou a atenção do pessoal que estava no cemitério”, relembra.
Lenon Diego Gauron