18/11/2024
Há mais de cinco décadas, Estanislau Zakowicz mantém viva a tradição da sapataria artesanal em Irati. Cercado por ferramentas antigas e equipamentos que carregam as marcas do tempo, o sapateiro, agora com 75 anos e mais de meio século de profissão, ainda demonstra o mesmo entusiasmo que o motivou a começar na carreira, aos 17 anos, em Rebouças.
Há pelo menos 30 anos, ele atua no mesmo endereço, na Rua Nossa Senhora de Fátima, na Sapataria Irati. No local, entre ferramentas de reparo que se tornaram suas companheiras fiéis e memórias de calçados feitos sob medida para clientes de toda a região, Estanislau compartilha detalhes de sua trajetória, reforçando o valor do ofício passado de geração em geração.
O aprendizado
Com um brilho nos olhos ao recordar o início de sua carreira, Estanislau Zakowicz relembra a paixão que o motivou a se tornar sapateiro. “Eu sempre tive vontade de aprender, de mexer com isso. Entrei nesse ramo com 17 anos, mais ou menos. Entrei numa sapataria lá em Rebouças, e em vez de ganhar para trabalhar, eu tinha que pagar para ficar numa pensão. O sapateiro não cobrava nada para ensinar, mas eu trabalhava de graça e pagava a pensão”, conta com alegria.
Após meio ano, ele já dominava o básico do ofício e, a cada dia, aprimorava suas habilidades. “Fiquei seis meses com os que trabalhavam lá, fui aprendendo com o pessoal que trabalhava na sapataria, eu ajudava eles. Com seis meses aprendi a profissão, fui aperfeiçoando no dia a dia. A parte de costura, de fazer os cortes para o sapato, esse eu aprendi sozinho”, relata.
Estanislau destaca as mudanças que os padrões de calçados sofreram ao longo dos anos, à medida que a preferência dos clientes evoluiu. “Eu fui aperfeiçoando cada vez mais”, comenta. “Antigamente, fazíamos meia-sola de couro. Quando eu fabricava botinas, eram pesadas, duras. Agora, as pessoas querem calçados leves, maleáveis, então isso mudou bastante.”
Histórias que se entrelaçam
Além de sapateiro, Estanislau também já atuou em outros ramos, sem deixar de lado a profissão que carrega até hoje. “Com 21 anos, eu entrei numa fábrica de carroceria e aprendi a fazer desenho de carroceria, pintura, madeiramento”, conta. Ele diz que a profissão de ferreiro praticamente já não existe mais, pois atualmente as peças vêm prontas e as pinturas são automatizadas. “Antes era desde o parafuso, tudo era feito manual”, recorda.
No entanto, foi justamente esse talento de Estanislau em fazer pinturas que ligou sua história a de Joel Amorim da Costa – que, depois, também se tornou sapateiro e atualmente mantém a Sapataria do Amorim, na Rua 19 de Dezembro.
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Natural de Campo Mourão, Amorim mudou-se para Irati em 1974 e começou a trabalhar com Estanislau. “Foi por acaso que eu comecei essa profissão de sapateiro, porque eu gostava de desenhar. Quando eu era novo ainda, eu tinha uns 12, 13 anos, eu gostava muito de fazer desenhos. O Estanislau fazia esses para-barros de caminhão – antigamente a gente via, agora já não tem mais, mas antes você via um caminhão cheio de letreiros, desenhos e imagens –. Quando ele viu que eu tinha feito um para-barro de bicicleta para o meu irmão, ele perguntou quem tinha feito e se eu não queria trabalhar com ele. Aí eu fui trabalhar com ele, gostei, ele me ensinou a desenhar várias coisas”, detalha Amorim.
Aproveitando as oportunidades da vida, em seguida Amorim deu o primeiro passo em sua trajetória como sapateiro. “Eu fui para sapataria dele, comecei a consertar os calçados, e aí começou tudo. Ele tem a Sapataria Irati, foi ele que me ensinou tudo. Aí comecei a trabalhar de sapateiro com ele e fui longe”, descreve.
Estanislau não só preservou a tradição do ofício de sapateiro em Irati, mas também formou novos profissionais, como Reginaldo (in memoriam), grande amigo de Joel Amorim. Quando Amorim foi chamado para servir no exército, Reginaldo assumiu seu posto na sapataria, após pedir autorização a Estanislau. O mestre aceitou, mas com a condição de que, ao retorno de Amorim, Reginaldo precisaria deixar o cargo. No entanto, ao voltar, Amorim insistiu para que Reginaldo permanecesse. Com o tempo, e com o apoio de Estanislau, Reginaldo abriu sua própria sapataria.
Após diversos anos, Amorim também decidiu que era hora de ser independente. “Fiquei 12 anos com ele e ele falou para mim: ‘esse tempo de serviço eu não vou ter dinheiro para te pagar. Você aceita eu dar uma sapataria para você? O material, as máquinas para você começar?’ E aí eu comecei por conta”, lembra Amorim.
Desafios e alegrias
Ao longo das décadas, ambos enfrentaram grandes desafios. Amorim recorda um dos momentos mais difíceis: um incêndio destruiu completamente sua sapataria, que ficava em outro endereço. “Há muitos anos atrás pegou fogo na minha sapataria, mas essa é uma história muito bonita, porque eu perdi tudo de um dia para o outro. Pegou fogo de noite e no outro dia eu cheguei e não tinha mais nada, só carvão”, relata.
Ao ver sua fonte de sustento ser destruída, o que surpreendeu Amorim foi a solidariedade de amigos e clientes, que se uniram para ajudá-lo a reerguer a sapataria. “Nós tínhamos um grupo de futebol e o meu primo saiu arrecadar as coisas por aí, na cidade para mim. Ele acabou arrecadando muito dinheiro naquela época. E muitos amigos meus passavam e me davam dinheiro para eu recomeçar. Um deu a mão de obra de pintura, outro fez a mão de obra de pedreiro, outro de carpinteiro, as fábricas e olarias me deram material. Em um mês a minha sapataria estava pronta de novo, eu sei que eu fiquei um mês parado só”, comenta. “A amizade e o reconhecimento das pessoas que querem a gente bem, isso aí que faz a gente continuar lutando”, acrescenta.
Estanislau também tem histórias interessantes para contar. Com a pandemia, ele perdeu clientes antigos, mas ainda possui recordações marcantes de pessoas que confiavam em seu trabalho. “Na sapataria eu tinha muitos clientes que eram fixos, acabaram morrendo com a pandemia, também por idade. Tinha o ‘migrante’ que eu fabricava sapato para ele. Ele era de Gonçalves Júnior. E aí ele chegava aqui e falava: ‘Por favor, o senhor faz um sapato para mim?’ Tinha um sotaque puxado, e aí nós fazíamos”.
O sapateiro sempre foi reconhecido por sua habilidade não apenas em consertar e confeccionar sapatos, mas também por sua dedicação em atender casos especiais, com soluções personalizadas para aqueles que enfrentavam dificuldades com os pés. Ele conta com carinho sobre alguns clientes que, por suas condições, precisavam de cuidados especiais. “Outro cliente tinha os dedos meio tortos, aí tinha que achar um jeito para conseguir fazer. Eu preenchia a forma com couro, lixava, preparava bem. Até ele já tinha uma forma própria, porque a pessoa que tem esse problema já tem uma [forma] definida. E daí só dava uma ajustadinha”, conta.
Estanislau lembra com carinho de um cliente especial, morador do Guamirim, distrito de Irati, que encontrou em sua sapataria a possibilidade de ter calçados que se ajustassem aos seus pés. “Tinha um cliente do Guamirim, lá do Taquari, que eu fabricava para ele. Ele tinha problema no pé, eu fazia umas botinas, ele pagava e saía contente, porque ele procurou em Prudentópolis, em Imbituva, em toda a região, e ninguém fazia para ele. Ele andava de chinelo de dedo e vivia caindo. Eu fabriquei umas botinas para ele por muitos anos. Ele me trazia galinha, trazia uns queijos e agradecia ainda, e saía contente”. Estanislau recorda com orgulho do rapaz que foi seu cliente fiel até o fim de sua vida.
Adaptação e evolução da profissão
Com o tempo, a profissão passou por grandes mudanças. Atualmente, os dois sapateiros deixaram de fabricar seus próprios produtos, concentrando-se apenas em consertos e na revenda de calçados prontos. “Tá bom porque serviço tem bastante, nunca falta. E é uma profissão que estou há 40 e poucos anos, mas estou aprendendo ainda, porque a gente aprende sozinho, ninguém ensina mais. Quando chega um calçado da moda, você tem que aprender no próprio calçado, essa é a nossa dificuldade. Você tem que olhar como é que foi feito e fazer o conserto, porque ninguém vai te ensinar mais, não existe mais um professor”, explica Amorim.
No entanto, o modo de trabalho e algumas ferramentas de costura continuam sendo as mesmas. “As blaqueadeiras hoje são elétricas, mas a minha ainda é o pulso”, brinca Estanislau.
Amorim também afirma que as ferramentas ainda são as mesmas desde quando iniciou. “A gente usa aqui uma lixadeira, que é uma ferramenta muito antiga, a máquina de costura que é a mesma”. A diferença, no entanto, está nos materiais utilizados atualmente. “Os produtos de hoje têm menos qualidade. Eu conserto até bolas também, e as bolas antigamente eu abria, consertava a câmara e costurava. Tinha até de couro antigamente. Agora a bola não tem mais nem costura, é tipo um plástico”, descreve.
Mudanças positivas também surgiram. Amorim lembra que, antigamente, havia apenas um tipo de cola, a famosa ‘cola de sapateiro’; hoje há colas instantâneas, que agilizam o trabalho. Além disso, a tecnologia financeira, como o Pix, trouxe facilidades. “A modernidade está aqui. O Pix facilita bastante, a profissão é antiga, mas agora com essa tecnologia, a gente vai se adaptando,” diz.
A tradição que resiste
A relação de Estanislau e Amorim com ofício de fazer fabricar e consertar calçados vai além do trabalho. Para eles, a profissão é uma arte que exige paciência, precisão e, acima de tudo, dedicação, fatores que são reconhecidos pelos clientes. “Tenho clientes que, desde que eu comecei, estavam comigo e já faleceram, e agora são os filhos que vêm aqui. Eu tenho clientes de Curitiba, tenho clientes até dos Estados Unidos. Tem pessoal de Irati que foi para os Estados Unidos e quando eles vêm para cá, uma vez por ano, trazem uma sacola de sapato para eu arrumar. Lá, provavelmente, não tem essa profissão. Já em Curitiba é muito difícil de achar”, detalha Amorim.
Ele conta que a profissão de sapateiro, atualmente rara, já foi vista com certo preconceito, especialmente entre o público feminino. “Na minha época de jovem, se você falasse para uma moça que você era sapateiro, elas nem queriam chegar perto de você. Hoje é meio que uma tradição, né? Eu trabalho com 90% de mulheres, público feminino, mas antigamente era uma profissão que não bem vista”, conta.
Com as mãos marcadas pelo trabalho artesanal, Amorim acredita que o ofício de sapateiro, assim como outras profissões tradicionais, corre o risco de desaparecer com o tempo. “Eu acho que quando nós partirmos podemos ficar sem essa profissão, como várias que já acabaram. Tem o alfaiate, por exemplo, deve ter um em Irati; o seleiro já não tem mais. Eu até penso, se eu soubesse como fazer um curso de sapateiro, eu faria. Mas é um negócio que não tem como você dar um curso, porque a gente mesmo está aprendendo até hoje”, diz.
Por conta disso, ele expressa seu desejo de transmitir o ofício de sapateiro ao neto. “Eu quero ver se ensino o meu neto essa profissão. Porque você imagine Irati daqui a alguns anos chegar a 100 mil habitantes e não ter um sapateiro? Então alguém tem que dar essa continuidade. Se Deus ajudar e ele quiser, vou ensinar a ele a profissão”. Amorim, que mantém vivo o ofício de sapateiro desde 1979, acredita que o único modo de aprender a profissão é vivenciando o dia a dia de trabalho com quem já possui experiência.
Lenon Diego Gauron