Infância: alicerce de experiências, emoções e aprendizados. Como proteger sua essência?

Especialistas refletem sobre as transformações desta fase e reforçam o papel das famílias na formação de adultos mais saudáveis e felizes
O Dia das Crianças é muito mais do que presentes e brincadeiras: é um momento para refletir sobre o desenvolvimento infantil, hábitos saudáveis e o fortalecimento de vínculos familiares. Entre alimentação, rotina e momentos de lazer, pequenas escolhas podem ter impacto direto na saúde física e emocional das crianças.
A infância como construção histórica
O professor Oseias de Oliveira, chefe do departamento do curso de História da Unicentro, observa que a ideia de infância, como conhecemos hoje, é considerada uma construção histórica relativamente recente, que começou a se consolidar, principalmente, entre os séculos XVII e XVIII, na Europa. E isso aconteceu ao lado do desenvolvimento da família moderna e também do conceito de educação escolar.
“Antes disso, as crianças eram vistas mais como pequenos adultos do que como indivíduos em desenvolvimento. O conceito de infância, enquanto uma fase distinta da vida, não existia de maneira clara. No período da Idade Média, as crianças eram frequentemente tratadas sem muita distinção dos adultos. Participavam das mesmas atividades, eram submetidas às mesmas regras e expectativas, e não havia educação ou cuidados específicos voltados para elas”. Oliveira descreve que o cotidiano infantil era marcado, muitas vezes, por pouca proteção, escassa preocupação com o bem-estar da criança e pelo trabalho precoce.
Na História, o professor conta que foi o historiador francês Philippe Ariès, o responsável por apresentar e consolidar uma reflexão mais forte sobre a infância. “Ele demonstrou que a concepção moderna da infância começou a mudar, a partir da escolarização obrigatória e da ideia de uma família voltada a educar e proteger”. Ariès observou que essas transformações estavam ligadas também às mudanças internas nas casas: surgiram os quartos separados dos pais e dos filhos, o espaço da sala, o ambiente doméstico ganhou novas funções — reflexos de uma nova forma de pensar a vida familiar e o papel da criança.
Essas percepções vieram acompanhadas pelo avanço das áreas da Psicologia, Medicina e Ciências Sociais, que passaram a compreender a criança como um sujeito com necessidades próprias e direitos, como lazer e educação. “Antes, na Idade Média, ela participava de todas as ações da família e na virada do período moderno também. Hoje, nós entendemos a criança como um ser que precisa de atividades especiais de acordo com as etapas específicas do seu desenvolvimento”, explica o professor.
Atualmente, há uma preocupação maior em garantir às crianças um ambiente que favoreça o desenvolvimento pleno — físico, emocional e social —, assegurando bem-estar, felicidade e contato com a natureza. A infância passou a ser vista como um período fundamental de formação, com direitos e responsabilidades sociais associados à sua proteção.
Oseias ressalta que, hoje, não se pode falar em uma única infância, mas em múltiplas infâncias: “A infância de uma criança em um ambiente rural, quilombola ou indígena pode ser completamente diferente daquela vivida por uma criança na zona urbana, em uma metrópole. Hoje, os estudos de Antropologia e História Rural buscam compreender essas variações e realidades diversas do que é ser criança em diferentes contextos”.
O afeto como base do desenvolvimento emocional
A psicóloga infantil e familiar, Stephanie Sonsin, destaca que uma infância saudável envolve vínculos, limites e presença. Em sua avaliação, o modo como a criança é acolhida em suas emoções e experiências cotidianas determina a formação de um adulto mais equilibrado e confiante.
“Pensar em uma infância saudável é poder oferecer para a criança aquilo que ela necessita para se desenvolver bem e para, então, ser um futuro adulto emocionalmente saudável. Infância é um lugar de brincadeiras, de ter uma rotina equilibrada, um sono de qualidade, de explorar a natureza, a vida e as experiências. É também um tempo de aprender sobre responsabilidade, dentro daquilo que é pertinente à idade, e de viver risadas e conversas com um adulto que a ampare”.
No entanto, ela enfatiza que uma infância emocionalmente saudável não é uma infância sem frustrações. “É aquela em que a criança pode sentir, errar e aprender — e, assim, amadurecer. Isso significa ter pais que acolhem o que ela sente e pensa, mas que também sustentam limites com firmeza, pois é justamente no limite que a criança encontra segurança”, explica.
O comportamento dos pais também mudou nos últimos anos. Stephanie diz que algumas transformações podem ser observadas nas últimas décadas, especialmente na tentativa dos pais de não reproduzirem modelos antigos, marcados pela rigidez e pelo distanciamento afetivo. Essa mudança, embora positiva, trouxe novos desafios. Com a dificuldade crescente de dizer “não” aos filhos, muitos pais acabam se guiando pelo medo de serem autoritários e pelo sentimento de culpa diante da rotina corrida, do trabalho e das obrigações. Assim, os limites — fundamentais para a formação emocional — tornam-se mais frágeis.
“Os balizadores acabam ficando fragilizados, o ‘não’ passa a ser visto como um vilão, e não como colaborador do desenvolvimento da criança”. Segundo a psicóloga, há situações em que as decisões familiares são centralizadas na criança — como a programação da TV, a escolha do que fazer no fim de semana ou até o sabor da pizza. “Essas atitudes são centradas na criança, e não na família. Os pais cedem por medo e culpa”, observa.
Um dos maiores desafios da infância atual é o desaparecimento do brincar. “As crianças têm brinquedos, mas não brincam”, alerta Stephanie. Ela compartilha que há pais que falam em não comprar mais brinquedos porque o filho não vai brincar.
A psicóloga observa que, mesmo no Dia das Crianças, é preciso refletir sobre o que a criança realmente precisa: tempo, experiências, presença e não apenas objetos. Com o aumento do tempo diante das telas, muitas crianças têm perdido oportunidades fundamentais de aprendizado e convivência. “Precisamos pensar no que tem ocupado o tempo da criança e da família. Ela tem brincado? Tem tempo para criar e fazer algo ou ela fica em frente às telas, observando outra criança brincando com os estímulos que provocam nela?”, questiona.
O excesso de estímulos digitais tem trazido consequências, como impaciência, dispersão, ansiedade e dificuldade de concentração. “Como tudo é muito rápido e veloz, essas situações acabam deixando de construir internamente aquilo que não é possível ser construído para o seu desenvolvimento em frente a uma tela, mas apenas diante de outro humano — outra criança, um adulto ou por meio dos próprios recursos que são da infância”.
Neste Dia das Crianças, Stephanie chama a atenção para que os pais realmente se comprometam em proporcionar que seus filhos tenham infância. Ela ressalta a importância de incentivar brincadeiras ao ar livre, o contato com a natureza e o tempo de qualidade em família. Mais do que brinquedos tecnológicos, a psicóloga alera as crianças precisam de rotina, limites e presença.
“Que haja presença, que a criança tenha um adulto para direcioná-la, para compartilhar experiências e construir momentos. Isso somente é possível diante de um adulto que diz o que é bom e o que não é, o que é viável, e que isso vai amparando e trazendo segurança, e não prejudicando, ou seja, os limites colaboram, facilitam e constroem internamente. Ajude o seu filho a ter infância”, reforça.
Segundo ela, os primeiros anos de vida são determinantes. “A infância é o chão que a gente pisa a vida inteira”, cita. É nesse período que se formam as bases emocionais e sociais do indivíduo. “É na infância que aprendemos a ser gente. Aprendemos tantas questões importantes como andar e falar, mas também a perceber o mundo ao nosso redor. São necessárias experiências de prazer, experiências estas que são quando a criança se sente viva, curiosa e envolvida no que faz.” Stephanie aponta que isso é o que a move a querer fazer, aprender e se relacionar.
Alimentação saudável desde os primeiros anos
A nutricionista materno-infantil, Jaqueline Orias, comenta sobre as mudanças recentes nas recomendações de alimentação infantil, a importância dos primeiros anos de vida, os erros mais comuns dos pais e estratégias para criar uma relação saudável com a comida.
Jaqueline conta que há grandes transformações nas orientações sobre alimentação infantil. “Hoje, sabemos que o bebê é capaz de participar ativamente do seu processo de alimentação desde o início. A introdução alimentar deixou de ser algo apenas sobre o que oferecer, e passou a ser também sobre como oferecer”.
O destaque é para a valorização da autonomia, o respeito ao tempo do bebê, o contato com os alimentos em sua forma natural e da criação de uma relação positiva com a comida. “Antes, o foco era em papinhas amassadas e horários rígidos. Agora, falamos de comida de verdade, da refeição compartilhada com a família e da experiência sensorial: olhar, cheirar, tocar e saborear”, explica a nutricionista.
Além desse novo olhar sobre o comportamento no início da vida, essas mudanças também se estendem para a infância. “Hoje, a nutrição infantil é vista de forma mais ampla, considerando o comportamento alimentar, o exemplo da família e o equilíbrio entre saúde e prazer. Não se trata apenas de nutrientes, mas de construir uma relação saudável e natural com a comida, algo que começa nos primeiros contatos com os alimentos e continua sendo fortalecido ao longo dos anos”. De acordo com a profissional, o cuidado e atenção com os alimentos nos primeiros anos de vida são essenciais para garantir um futuro mais saudável.
“É nessa fase que o corpo e o cérebro da criança estão se desenvolvendo de forma mais intensa. Os hábitos formados agora tendem a acompanhar a criança por toda a vida”. Jaqueline ressalta que os primeiros mil dias, desde a gestação até os dois anos de idade, representam uma janela de oportunidade única para fortalecer o sistema imunológico, prevenir deficiências nutricionais criando assim, uma base sólida para a saúde física e emocional.
Nesta etapa, boa alimentação e suplementação rendem reflexos diretos no dia a dia: “fornecem energia para brincar, favorecem o aprendizado, ajudam no crescimento e reduzem o risco de doenças como obesidade, diabetes e alergias no futuro. Cuidar desse período é investir em prevenção e isso faz toda a diferença na vida adulta”.
A nutricionista cita algumas falhas comuns e, uma delas, é acreditar que todos produtos industrializados com o apelo de indicação ao público infantil são saudáveis. “Muitos alimentos vendidos com personagens infantis, cores chamativas e frases como ‘rico em vitaminas’ ou ‘fonte de cálcio’ podem conter muito açúcar, corantes e aditivos”. Ela salienta que é importante verificar os ingredientes e lembrar que, quanto mais natural o alimento, melhor a sua indicação de consumo.
Outro erro notado por ela é quanto ao excesso de restrições, que acaba gerando ansiedade e culpa nos pais na tentativa de fazer tudo perfeito. Jaqueline frisa que a alimentação saudável precisa ser simples e possível no dia a dia. “O equilíbrio está em priorizar comida de verdade, respeitar a fome e o apetite da criança e lembrar que o exemplo da família fala mais alto do que qualquer regra”.
Influência do exemplo familiar e do ambiente à mesa
“Crianças aprendem observando: se a família come junto, compartilha as refeições com calma e mostra prazer em comer alimentos variados, a criança tende a repetir esse comportamento. A mesa é um espaço de convivência, não de cobrança. Quando o momento da refeição é leve e acolhedor, a criança se sente segura para experimentar e aprender”, enfatiza Jaqueline Orias.
Conforme a especialista em nutrição materno-infantil, algumas atitudes práticas ajudam muito: evitar distrações, como comer em frente à TV ou usar tablets durante as refeições, e incentivar a criança a participar da preparação dos alimentos. Esses pequenos hábitos, segundo ela, fortalecem a autonomia, o interesse pelos alimentos e a relação positiva com a comida.
Rotina alimentar equilibrada
Para manter uma rotina de alimentação adequada e segura, Jaqueline revela que o segredo está na organização e na simplicidade. “Ter frutas já lavadas e cortadas, planejar as refeições da semana e incluir a criança na rotina da cozinha fazem muita diferença. Não precisa ser perfeito, precisa ser real. Se a base da alimentação for composta por alimentos naturais, como frutas, legumes, feijões, cereais, ovos, carnes e preparações caseiras, não há problema em ter exceções”. Ela completa que a ideia é construir hábitos consistentes, e não uma rotina inflexível, pois o mais importante é que a alimentação traga saúde, prazer e momentos em família.
Comida é vínculo familiar
“Como nutricionista materno-infantil, acredito que orientar famílias vai muito além da parte técnica. É sobre acolher, entender a rotina e ajudar cada mãe a se sentir mais confiante nesse processo. Não existe fórmula pronta: cada criança tem seu tempo, e cada família, sua realidade.
O mais importante é que a alimentação seja vivida com leveza e presença, com comida de verdade e momentos compartilhados à mesa. Comer junto, oferecer comida de verdade e transformar as refeições em momentos de vínculo fazem toda a diferença”. Jaqueline Orias, nutricionista materno-infantil
Fernanda Hraber
