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Apesar de imperfeita, democracia é o único regime que garante a plenitude dos direitos civis

05/09/2022

Apesar de imperfeita, democracia é o único regime que garante a plenitude dos direitos civis

Nos últimos tempos tem sido observado, principalmente nas redes sociais, o crescimento de grupos defendendo a volta de regimes autoritários, assim como foi a Ditadura Militar. O Doutor em História Social Eduardo França de Oliveira e o presidente da Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Irati Mário Cezar Pianaro Angelo concordam que a interpretação errada dos fatos pode ser um dos motivos pelos quais esses grupos vêm surgindo. Também explicam sobre o período ditatorial e suas implicações na época, além das consequências que perduram até os dias atuais

Lenon Diego Gauron

Não é raro encontrar algumas pessoas que simpatizam com regimes autoritários inconstitucionais e que ultrapassam os limites legais ao defender ou pedir a volta de modelos de governo que suprimem direitos civis. Um destes modelos foi a Ditadura Militar, instituída em 1964 no Brasil, e que foi marcada por diversos crimes, como tortura e mortes de pessoas contrárias ao regime.

O que foi a Ditadura Militar?

Ditadura Militar é o período em que o Brasil foi comandado por governos militares após estes deporem o então presidente João Goulart por meio de um golpe, em abril 1964. O doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), e professor adjunto do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro Oeste (Unicentro) campus Irati, Carlos Eduardo França de Oliveira avalia que essa época foi marcada pelo estabelecimento de um regime de caráter nacionalista e autoritário, que suprimiu direitos dos cidadãos brasileiros por aproximadamente vinte anos. “Embora utilizar o termo Ditadura Militar não seja propriamente incorreto, é mais preciso nomear o período como uma ‘ditadura civil-militar’. Isso se deve ao fato de que ela não foi obra tão somente dos militares, ainda que estes tenham protagonizado o golpe e os governos de 1964 a 1985, mas também de civis que apoiaram o regime e ajudaram a moldá-lo e legitimá-lo, colhendo inclusive benefícios, como políticos, empresários e tecnocratas”, detalha Oliveira.

Em março de 1985, o regime chegou ao fim com a posse do primeiro presidente civil, José Sarney. O doutor em História Social aponta que o surgimento do regime militar brasileiro deve ser compreendido a partir da conexão entre duas conjunturas: uma nacional e outra internacional.

Esquerda x direita

No contexto interno, entre fins da década de 1950 e início da de 1960, existiu o amadurecimento de um conjunto de propostas e reivindicações de fundo que acabariam sendo chamadas de “reformas de base”, projetos que pretendiam encarar problemas históricos do país, como a concentração fundiária no campo, o déficit habitacional urbano, o acesso à educação, a regulamentação do mercado financeiro nacional e a participação do povo na política.

Apoiado por sua maioria por grupos políticos mais à esquerda, esse programa reformista tomou corpo ao longo do governo Goulart e teria o Estado como protagonista ao assumir parte do controle dos setores siderúrgico, financeiro, educacional, de transportes, de comunicações e de saúde, considerados então estratégicos.

Além disso, no campo, surgem sindicatos rurais e ligas camponesas. Já nas cidades, surge o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e organizações estudantis, em especial a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes). “Tais organizações dialogavam com agremiações políticas como PTB, PCB e FPN, que aos poucos foram se radicalizando. Já na década de 1960, começaram a aparecer agrupamentos revolucionários, a exemplo do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), de Leonel Brizola, e da Ação Popular (AP)”, explica Oliveira.

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Ele comenta também que as forças mais conservadoras do país, temendo perder privilégios e o controle sobre o capital, reagiram com a formação de organizações sociais e políticas próprias, como o Instituto de Pesquisas Econômicas Sociais (IPES), a Ação Democrática (AD), a Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), dentre outras. Seus articuladores eram, na grande maioria, políticos de inclinação mais à direita, grandes empresários, donos de grupos de comunicação e setores religiosos conservadores. Oliveira cita ainda que na época os argumentos eram de que o país estaria à beira do caos social, a um passo de ingressar numa “revolução socialista” que desestruturaria a sociedade brasileira, o que influenciou partes de diversas classes sociais do Brasil.

Guerra Fria

Por sua vez, com o andamento de conflitos internacionais, o contexto externo serviu para colocar ainda mais ‘lenha na fogueira’ do Brasil, explica o professor.  “Numa época em que a Guerra Fria compelia formadores de opinião e membros da sociedade civil organizada a tomarem partido entre os blocos socialista (liderado pela URSS) e capitalista (capitaneado pelos EUA), a manipulação da opinião pública foi decisiva para a criação de um ambiente de mobilização contra supostas ‘forças subversivas’”, avalia. “Além disso, os Estados Unidos acompanhavam atentamente os acontecimentos que se davam no Brasil e em seus vizinhos. Não à toa que apoiaram e/ou patrocinaram um punhado de golpes militares na América Latina nas décadas de 1960 e 1970, como forma de assegurar seus interesses econômicos e evitar qualquer tipo de influência oriunda do bloco socialista”, acrescenta.

O golpe militar no Brasil teve início após Goulart elevar o tom reformista em seus discursos naquele ano de 1964, que o isolou progressivamente do Congresso. Os militares prometiam entregar o governo aos civis em pouco tempo, o que não ocorreu. Além disso, a adesão de parte da população abriu terreno para um regime que se estendeu por aproximadamente vinte anos.

O presidente da Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Irati Mário Cezar Pianaro Angelo destaca as consequências jurídicas da época. “Ao longo dos anos em que o regime militar permaneceu no poder, a legislação vigente foi sendo alterada conforme a conveniência política do momento. Houve momentos de moderação do regime e outros de recrudescimento”, explica Pianaro.

A implantação do regime foi instaurada a fim de evitar uma ameaça que não se concretizou de fato. “É importante ressaltar que a ideia de que o golpe, nomeado pelos militares à época de ‘revolução’, foi uma ação preventiva contra uma ameaça socialista nunca se comprovou, não passando de pretexto para um desfecho político autoritário de tomada do poder. A existência de setores mais radicais à esquerda não significava, automaticamente, a adoção de práticas necessariamente alinhadas ao ideário do bloco socialista caso as reformas de base fossem implantadas”, argumenta Oliveira.

Consequências que se refletem até hoje

Uma das características do período foi a promulgação de Atos Institucionais (AI) que tinham como intenção legalizar o que era ilegal, dando aspecto constitucional aos atos não previstos nas constituições.  “No campo político, os Atos Institucionais, impostos pela alta cúpula militar, minaram os pilares básicos da democracia brasileira, cassando mandatos, perseguindo políticos, abolindo o pluripartidarismo e as eleições para presidente, destituindo funcionários públicos e intervindo em sindicatos, ligas camponesas, agremiações estudantis e outras organizações sociais. A criação do Serviço Nacional de Informação (SNI) e do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna) deu aos militares um poderoso aparato de informação e repressão responsável por torturas, mortes e desaparecimentos de opositores ao regime”, detalha Oliveira.

Talvez o Ato Institucional mais lembrado seja o AI-5, o quinto de diversos decretos emitidos pela ditadura militar, que resultou na perda de mandatos dos contrários aos militares, intervenções nos municípios e estados e também na suspensão de garantias constitucionais. Pianaro aponta que a aplicação do ato dava carta branca aos militares para que agissem do modo que achassem melhor. “O auge da repressão se deu com a edição do AI-5, em dezembro de 1968. Este Ato institucional dava ao presidente o poder de determinar o confisco de bens, cassar mandatos políticos, suspendeu o direito ao habeas corpus, fechou temporariamente o Congresso Nacional entre outras medidas de exceção. Evidentemente causou enorme insegurança jurídica, especialmente aos opositores do governo e àqueles que denunciavam as arbitrariedades cometidas”, descreve.

Além da dor da perda de familiares vítimas da repressão, Oliveira garante que a disposição e atuação de diversos setores públicos ainda têm a herança do modo operante iniciado durante o regime militar. Ele cita diversas consequências que prevalecem até os dias atuais. “É impossível ignorar que ainda existem famílias que sofrem a perda de um pai, de uma filha ou de uma amiga, vítimas da repressão. Isso sem contar pessoas que foram abusadas e torturadas e que até hoje não se recuperaram plenamente. Em segundo lugar, a organização de determinados órgãos públicos ainda guarda heranças da ditadura. O caso da permanência das polícias civil e militar é um dos mais emblemáticos, o que vem atravancando sobremaneira a modernização e o aperfeiçoamento das nossas forças de segurança pública. A polícia ainda é vista, ao menos em parte e por determinados setores da sociedade, como uma força de repressão, não de proteção ao cidadão. Talvez a mais visível de todas as consequências do período seja a da desigualdade social, que proliferou a passos largos durante a ditadura, relegando aos governos posteriores o desafio de enfrentá-la”, enumera o doutor em História Social.

Além disso, ele destaca que a época foi marcada por grande crescimento econômico, mas sem muito desenvolvimento. “No campo socioeconômico, o regime lançou mão de um amplo e ousado processo de modernização do país, construindo grandes obras de infraestrutura e criando estatais em setores estratégicos. No entanto, o crescimento do período, apelidado de ‘Milagre Econômico’,  não significou a melhoria de condições de vida da população em geral – que vivenciou sucessivos arrochos salariais e a precarização das políticas sociais –, mas a concentração de renda em grupos empresariais e do capital financeiro e especulativo. A desigualdade social aumentou. Além do mais, políticas fiscais e monetárias desastradas levaram o país a um ciclo de hiperinflação que só teria fim em meados da década de 1990”, descreve.

Outra área que no ponto de vista de Oliveira sofreu retrocesso foi a cultural. “O campo cultural também foi muito afetado. A perseguição e a censura direcionadas a artistas, escritores e outros membros da classe artística impediu o desenvolvimento de importantes áreas da produção cultural do país, como por exemplo o cinema e o teatro. Em suma, o regime militar tolheu iniciativas de caráter transformador e que fossem contrárias às doutrinas por ele apregoadas”, acrescenta.

Corrupção

Saudosistas da ditadura militar muitas vezes alegam que não existia corrupção durante o período, entretanto, devido à censura aos meios de comunicação, casos existentes muitas vezes não eram expostos de modo como é feito atualmente pela imprensa.

O portal Memórias da Ditadura, que responde à demanda da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, explica que durante o período da ditadura havia corrupção, mas os casos de escândalos não chegavam aos jornais.

“Os militares não tinham interesse em deixar vazar casos de corrupção que envolviam seus aliados ou colegas de farda, justamente para não estimular a descrença nas autoridades e no poder de Estado. Impedir a publicação de notícias sobre a corrupção era parte da estratégia de segurança nacional”, diz um trecho de um artigo do site que reúne a história do regime militar.

Por que algumas pessoas simpatizam com a volta do regime militar?

No ponto de vista do presidente da Subseção da OAB de Irati, muita gente confunde os valores ensinados no meio militar com a ditadura militar. “Algumas pessoas valorizam sobremaneira valores como disciplina e respeito à hierarquia, associados ao militarismo. Vimos esse fator influenciar recentemente comunidades escolares a optarem pela adoção de escolas cívico-militares”, avalia Mário Cezar Pianaro Angelo.

Já para o doutor em História Social, as motivações podem ser muitas. Existem aqueles que enaltecem o período, influenciados por notícias falsas ou discursos políticos veiculados nas redes sociais. Ele explica que existe também o grupo de pessoas com mais idade que foram influenciados por uma imagem positiva repassada pelo regime na época. “Existe um outro grupo, composto majoritariamente por pessoas de setenta aos oitenta anos, que comprou a versão positiva do regime militar, construída por ele próprio, e que não consegue enxergá-lo como uma ditadura de fato, negando ou relativizando os crimes cometidos. Essas pessoas forjam um mecanismo de defesa psicológica que as impede de rever suas opiniões, uma vez que a aceitação do que realmente ocorreu às colocaria na condição de coniventes com atrocidades perpetradas e com um discurso notadamente mentiroso”, afirma Oliveira.

Desde 2021, o Código Penal brasileiro considera “crimes contra a soberania nacional” condutas como a abolição violenta do estado democrático de direito, o golpe de Estado, a interrupção do processo eleitoral, a violência política e a sabotagem de serviços essenciais. Com isso, a defesa da volta do regime ditatorial militar pode constituir um flerte com esses crimes, embora a manifestação crítica aos poderes constitucionais não seja considerada um delito. 

Oliveira cita que a defesa do regime militar denota incompreensão da história recente do país.

Nas redes sociais, pessoas com pensamentos parecidos,  reúnem-se em grupos e são persuadidos por autoridades políticas, que influenciam o pensamento de apoiadores e entusiastas sobre uma ideia, muitas vezes distorcida. “Na internet, você conversa com seus pares, é a famosa bolha, onde todo mundo fala a mesma coisa, todo mundo tem a mesma opinião e, com isso, essas bolhas vão inflando, porque as pessoas se sentem representadas e isso ganha ares de legitimidade”, aponta.

O presidente da OAB frisa que a Ditadura Militar caracteriza-se como um regime antidemocrático, pois impede com que a sociedade participe das decisões. “Na ditadura o poder é concentrado na figura do chefe político. Não há espaço para discussões e formação de consensos sobre os temas de interesse da sociedade, mas sim uma imposição de cima para baixo, associada a formas de repressão de críticas”, avalia Pianaro.

Defesa da democracia

Recentemente, uma carta em defesa da democracia e do sistema eleitoral lançada pela faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), recebeu mais de um milhão de assinaturas. A carta diz que "ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira".

O documento foi aberto ao público em 26 de julho e lido durante manifestação no dia 11 de agosto, na região central da cidade de São Paulo.

Para Oliveira, críticas a quem defende a ditadura não é algo exclusivo de partidos ou ideologias consideradas de esquerda, mas sim de uma percepção geral de que a garantia do estado democrático de direito só é possível com uma democracia. “Por esse motivo que setores da direita liberal e da esquerda – cujas premissas político-ideológicas são marcadamente distintas – concordam na importância da democracia como garantidora dos direitos fundamentais”, explica.

O regime democrático é baseado na Constituição Federal, que já em seu primeiro artigo garante que todo poder emana do povo. Mário Cezar Pianaro Angelo acredita que somente assim é possível promover um país mais igualitário a todos. “Já disseram que a democracia é o pior de todos os regimes, com exceção de todos os outros que se conhece. Embora a democracia apresente problemas, como a falta de representatividade do nosso atual sistema político, é o único regime que garante ao cidadão a plenitude de seus direitos civis, como a escolha de governantes, a liberdade de associação, liberdade religiosa, o direito a receber um julgamento por juiz imparcial e segundo as leis, entre tantos outros fatores”, destaca o presidente da OAB.

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