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Um pedido de socorro em meio ao caos

19/09/2018

Um pedido de socorro em meio ao caos

Era uma casa muita engraçada. Tinha teto, mas não tinha nada. Ninguém podia entrar nela não, porque a moradora não deixava não. Assim como na casa eternizada pelo poeta Vinícius de Moraes na cantiga, a casa localizada no alto de Irati se destaca das diversas outras que estão ao redor por não ter nada. Ninguém podia tomar banho quente, porque água e luz não tinha não. Ninguém podia comer ali, porque comida não tinha não. Mas, assim como na cantiga, a casa é feita com muito esmero pela Maria*.
O esmero aparece nas letras garrafais escritas em vermelho e preto em painéis de madeira, tecido e outros materiais. Também na própria casa e nos muros. Quem passa por ela, logo percebe que ali mora alguém com vontade de falar. Alguém que pede socorro.
Maria reside nessa casa há muitos anos. Foi nessa casa que viveu com sua mãe até que ela desse o seu último suspiro. Ali, hoje ela vive sozinha. Não tem água e nem luz, come quando dá. A comida vem aos poucos. De quilo uma vez ao mês, quando vem. Seus amigos são os gatos e é com eles que ela divide o alimento, as dores e a vida. O portão da casa nunca fica trancado, mas lá dentro só entra quem ela convida. Coisa que raramente acontece.
Ao bater a porta, quem atente é uma mulher de aproximadamente 56 anos. Com traços expressivos, aparência bem cuidada, a mulher loira ainda demonstra jovialidade e possui uma fala eloquente. Mas é só no contar a sua história de vida que percebemos que a fronteira entre o real e o imaginário está confusa. Ao falar sobre sua vida, às vezes sorria, em outras vezes, suas palavras ficavam embargadas e as lágrimas enchiam os seus olhos. É difícil saber o que é real e o que é imaginário, se as acusações são verdadeiras ou não, mas esta é a história de Maria, contada por ela.
O protesto pela herança
Quem passa pela rua onde ela mora fica curioso ao ver tantos letreiros espalhados pela fachada da casa. Nesses cartazes estão desabafos, pedidos de comida e de ajuda. “É um protesto mesmo, contra os colarinhos brancos, porque desde pequena eles judiaram de nós”, afirma Maria, misturando a realidade com o imaginário.
Ela conta que sua vida mudou logo após a morte da mãe. Ela ficou sozinha, mesmo tendo uma família com muitos irmãos. A ideia de fazer um protesto surgiu há três anos. Após pensar em sua vida e em seu sofrimento, ela resolveu gritar para o mundo o que supostamente aconteceu. “O protesto começou em setembro de 2015 como está ali, [apontando para o canto da parede] eu não deixo meu protesto cair. Caiu um pano eu coloco outro, porque assunto não me falta”, explica.
No seu imaginário, ela sonha com uma herança. Segundo ela, a família de sua mãe, de sobrenome conhecido na cidade, lhe deve. Através desse protesto, ela quer que o dinheiro dessa herança chegue até ela. “Eu não vou parar com o protesto enquanto eu não receber o meu dinheiro. Então, eu pedi uma revisão da herança, eu quero uma revisão”, diz.
As frases escritas por Maria são feitas com carvão e óleo. “Eu já fui protestar no controle da nação. Ergui uma faixa vermelha no meio da rua para eles não pensarem que o meu protesto era só aqui, que não era só de fundo de quintal. Mostrei para eles que eles não iriam me intimidar”, conta citando uma viagem que supostamente fez para protestar.
Em uma das frases marcantes do seu protesto ela diz que sente fome, que quer a parte roubada de sua herança. “Eu não estou contente com a parte que ele deu [fala de um tio que supostamente teria roubado a família]. No plano Color que teve o juro diário. Eu quero esse juro diário, porque hoje é a minha aposentadoria, porque eu não tenho. Tô dependendo dos outros virem me ajudar, vem de quilo para mim as coisas, uma vez por mês”, diz.
O sofrimento é algo marcado em sua fala. “Nós éramos sete filhos, não tínhamos casa fixa para morar, meu pai era muito trabalhador, muito sofrido”, relata com tristeza nos olhos.
“Nós fomos jogados na vida. Nossa mãe era considerada louca. Meu pai não arrumava emprego. A herança nunca veio, ficamos sabendo que meu avô morreu depois de vários dias. Meu avô tinha muitos terrenos, mas nunca chegou até nós”, diz lamentando.
Uma porcentagem da herança, segundo ela, só veio no ano de 1981. “Vivíamos nas terras dos outros, não tínhamos lugar para nada, e a mãe sofrendo com as crianças para cima e para baixo e outras pessoas de posse da nossa herança e nós nem pão tinha. Só em 1981 que meu tio deu essa casa, mas com quatro paredes e sem luz e água”, conta.
 

O abuso

Em meio à sua fala apressada, Maria cita histórias de abusos e violências sofridas. Acusa um padrinho pelos abusos e relata que sofreu dificuldades quando criança, quando se mudou para a casa desse padrinho, onde ajudava nos serviços domésticos. “Eu fui molestada sexualmente com seis pra sete anos”, afirma.
Ela conta que percebeu aos poucos. “Ele arrumou um quartinho pra mim do lado do dele. Eu me lembro como hoje daquele quartinho. Ele fez uma porta direto pro quarto dele. A madrinha era muito doente, tinha problema de coração e vivia mais no hospital do que em casa. Ele disse que eu iria dormir ali agora, e mandou eu dormir com a luz apagada”, diz com o semblante triste, como se voltasse ao local e revivesse a cena.
“Uma certa noite, eu não sei se foi  o padrinho, ou se foi o filho dele, que foi no meu  quarto e a noite eu me acordei  com a mão nas minhas partes íntimas. Alguém me pegou. Eu gritei tanto, mas tanto que até desmaiei”, conta triste.
Depois de algum tempo Maria foi enviada para morar com seus pais novamente. “Quando voltei embora, voltei meio tonguinha. Eu não conseguia tomar banho. Quem me dava banho era minha mãe, e ela viu que eu estava diferente, que eu não estava igual às outras meninas, então minha mãe me mandou para Curitiba porque não queria mais eu, porque eu não era mais moça. Fui discriminada onde eu morava porque não era mais moça, o rapaz que eu namorava já não me quis mais”, comenta. 
 

Prostituição

As 18 anos, abandonada à própria sorte, começou a trabalhar como garota de programa. Ela afirma que decidiu trabalhar para dar uma vida melhor para sua família. “Eu fui jogada na vida como prostituta. Tudo que eu faturei, que eu ganhei eu colocava em casa, porque a mãe não tinha aposentadoria no começo, depois é que a mãe conseguiu aposentadoria”, fala.
Segundo ela, tudo que ganhava era depositado em uma conta para que a família pudesse usufruir de seu ganho. “O cara do banco lá em São Paulo falou assim pra mim, ‘Maria você está mandando todo o seu dinheiro para casa, a hora que você for se aposentar você vai abater na aposentadoria’. Eu mandava, dez mil, cinco mil, eu trabalhava bastante. Eu era bem bonita”, diz dando uma risadinha.
Ela conta que a família sabia de sua profissão. “A minha mãe sabia que tudo que eu ganhasse era pro bem estar de nós, era para nós, porque nós nunca tivemos nada”, disse. Conta que só voltou a Irati, depois que sua mãe adoeceu, de quem cuidou até falecer.
 

Invisível

Dentro de seu mundo, Maria conseguiu enxergar nos cartazes escritos em letras garrafais o modo de tornar o invisível, em visível. Os cartazes também chamam atenção dos vizinhos que tentam encontrar uma explicação para o que aconteceu com aquela mulher, que costumava ser boa com os vizinhos, ajudando-os até a cortar os cabelos. Para muitos, a explicação é que é bruxaria.
 

Assistência

Contudo, quem poderia auxiliar na invisibilidade social de Maria acaba também encontrando limitações. Segundo a secretária de Assistência Social de Irati, Sybil Dietrich, como é grande o número de atendimentos, não é possível ter conhecimento sobre todos os casos. É preciso que haja uma denúncia ou um pedido de ajuda. E ainda há casos que também não são atendidos porque as pessoas envolvidas não querem receber ajuda. “Às vezes a ajuda que você percebe não é a ajuda que essa pessoa quer, então nós analisamos o caso. Buscamos saber se tem família, se recebe benefício. Tudo é feito um estudo de caso por toda a equipe”, explica Sybil.
A equipe do jornal Hoje Centro Sul levou o caso de Maria ao conhecimento da secretaria. Em casos como esse, a assistência social do município vai averiguar o que está acontecendo. “Normalmente fazemos uma visita para verificar as condições em que essa pessoa vive e vemos se realmente procede a denúncia, porque de repente é feito a denúncia e a pessoa já é acompanhada”, relata Sybil.
Segundo a equipe do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) alguns atendimentos já foram realizados pelos profissionais em outro momento, porém os atendimentos não foram continuados porque Maria não teve mais interesse.
O atendimento de Maria foi retomado no mesmo dia em que fizemos o contato com a equipe do Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e do Creas, que realizou uma visita. “Estamos fazendo o atendimento a ela. Enquanto Creas, realizamos uma visita, levamos a cesta básica e estamos fazendo os atendimentos, até onde ela quer. Estamos fazendo esses atendimentos no portão. Nós não podemos entrar e ficar perguntando, por conta dos vizinhos, porque eles ficam escutando”, explica Saionara Israelita Franco, pedagoga do Creas.
Na segunda visita realizada pelo Creas, Maria já demonstrou resistência para ser atendida. Nos próximos dias, uma reunião com profissionais da Secretaria de Saúde deve ser realizada para discutir os atendimentos que serão prestados afim de melhorar a saúde de Maria Uma reunião com os familiares também deve ser realizada.

*O nome foi trocado para proteger a identidade da mulher. Nomes citados por ela durante a matéria também foram omitidos para preservação de imagem.

 

Texto: Silmara Andrade/Hoje Centro Sul

Fotos: Jonas Stefanechen/Hoje Centro Sul

 

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